Oh, encantada. Adoraria.
Não quero dançar com ele. Não quero dançar com ninguém. E, mesmo que quisesse, não seria com ele. Ele estaria no pé de uma lista dos dez últimos. Já vi como ele dança; parece atacado pela doença de são Guido. Imaginem, há menos de quinze minutos, eu estava com pena da pobre coitada que dançava com ele. E agora eu é que vou ser a pobre coitada. Não é mesmo um mundo muito pequeno?
E é uma delícia de mundo, também. Tudo que acontece nele é tão fascinante e imprevisível, não? Eu estava quietinha no meu canto, metendo-me com o meu próprio nariz, sem fazer mal a ninguém. E aí ele entra em minha vida, fazendo aqueles olhos e bocas, e me arrasta para uma memorável mazurca. Ora, ele nem sabe o meu nome, e muito menos o que significa. Pois significa Desespero, Perplexidade, Degradação, Futilidade e Crime Premeditado, mas ele nem desconfia. Também não tenho a mínima idéia do seu nome, mas, pelo jeitão dele, só pode ser Jukes. Como vai, sr. Jukes? E como vai passando o seu querido irmãozinho, aquele com duas cabeças?
Por que ele teve de vir infernizar justamente a mim, com suas más intenções? Por que não me deixou cuidar da minha vida? Peço tão pouco! Só queria ficar quieta no meu canto da mesa, ruminando sozinha a minha solidão pelo resto da noite. E aí ele chega, com suas mesuras, rapapés e seus pode-me-dar-a-honra. E ainda sou obrigada a dizer que adoraria dançar com ele. Não entendo como um raio não desabou direto sobre a minha cabeça. Podem crer, um raio na cabeça seria como um fim de semana na praia, comparado ao contorcionismo de uma dança com este rapaz. Mas, o que eu podia fazer? Todo mundo já estava dançando, exceto eu e ele. Eu estava numa arapuca. Como uma arapuca dentro de outra arapuca.
O que se pode dizer, quando um rapaz nos vem tirar para dançar? Obrigada, mas não quero dançar com você, e pode ir lamber sabão. Ou então: Oh, muito obrigada, adoraria dançar, mas é que, neste exato momento, estou entrando em trabalho de parto. Ou então: Oh, claro, vamos dançar, é tão raro hoje em dia conhecer um rapaz que não tenha medo de contrair minha beribéri. Não. Eu não podia fazer nada a não ser dizer que adoraria dançar com ele. Está bem, vamos acabar logo com isso. Cara ou coroa? Deu cara, você leva.
Linda valsa, não? Dá vontade de apenas ficar ouvindo a orquestra, não? Não se importa? Oh, que linda valsa! Estou arrepiada. Não, claro, adoraria dançar com você.
Adoraria dançar com você. Adoraria também extrair as amígdalas. Adoraria estar num barco em chamas. Mas agora é tarde. Já estamos a caminho da pista. Oh. Oh, Deus. Oh, Deus, oh, Deus, oh, Deus. É ainda pior do que eu pensava. Acho que é uma das poucas coisas da vida de que sempre se pode ter certeza – tudo que promete ser ruim acaba sendo ainda pior.’ Se eu realmente soubesse como seria dançar com ele, teria fingido um desmaio ou coisa assim. Bem, acho que, no fim, vai dar na mesma.
Vamos acabar no chão em menos de um minuto, se ele continuar desse jeito.
Foi ótimo tê-lo convencido de que a orquestra estava tocando uma valsa. Só Deus sabe o que teria acontecido se ele achasse que era algum ritmo mais rápido; acho que já teríamos voado pela janela. Por que ele tem essa mania de dançar no ar, em vez de ficar paradinho com você nos braços por apenas alguns segundos? É esse maldito lufa-lufa da vida neste país que é responsável por esses celerados. Ai! Puxa, pare de me chutar, seu idiota! Já é a segunda vez que você me acerta a canela. É minha canela de estimação. Tenho-a desde que era garotinha.
Oh, não, não, não. Não doeu nem um pouquinho.
Além disso, foi minha culpa. Claro que foi. De verdade. Você é uma gracinha de se desculpar, mas não precisa. A culpa foi toda minha.
O que será que devo fazer: matá-lo neste exato momento, com minhas próprias mãos, ou esperar que ele tenha um enfarte em poucos segundos? Talvez seja melhor não fazer uma cena. Acho que vou relaxar e esperar que a natureza se encarregue dele. Ele não pode manter esse ritmo indefinidamente – afinal, é apenas feito de carne e osso. Mas vai morrer pelo que fez comigo. Não pensem que sou hipersensível, mas ninguém me convencerá de que aquele chute na canela foi sem querer. Segundo Freud, não existem acidentes. Não sou do tipo enclausurada e já dancei com rapazes que me pisaram nos calos ou acertaram meus joanetes; mas, quando é a canela que está em jogo, torno-me uma besta-fêmea. Viro para o rapaz e digo: “Está bem, quando me chutar a canela, pelo menos sorria” . Talvez ele não tenha feito por mal. Podia estar apenas querendo mostrar animação. Eu deveria ficar feliz por ver que pelo menos um de nós está se divertindo. E mais feliz ainda se sair viva da pista. Não será pedir demais a um rapaz que você acabou de conhecer que ele devolva suas canelas exatamente como as encontrou? Afinal, o pobre rapaz está fazendo o melhor que pode. Provavelmente nasceu e foi criado no interior e só foi calçar botinas no exército.
Sim, é uma delícia, não é? É simplesmente uma delícia. Não é uma valsa deliciosa? Oh, eu também estou achando uma delícia.
Bem, estou positivamente à mercê de um dançarino que quer bater todos os recordes do mundo. Ele é meu herói. Tem um coração de leão e a força de um búfalo. Vejam só: não dá a mínima para as conseqüências, não liga para o que os outros pensam, contorce-se como se tivesse o diabo no corpo, com os olhos chispando e chamas no rosto. Pensam que vou recuar’? Mil vezes não. Afinal, que me importa passar os próximos dois anos num colete de gesso? E quem quer viver para sempre?
Oh. Oh, Deus. Ora, ele é até legal. Por um momento pensei que iam expulsá-lo da pista. Não suportaria que alguma coisa lhe acontecesse. Eu o adoro. Adoro-o mais que qualquer outra coisa no mundo. Incrível a animação que ele tira de uma valsa chocha e vulgar; em comparação, os outros dançarinos parecem uns palermas. Ele representa a juventude, o vigor e a coragem, a força e a alegria e – Ai! Saia de cima do meu pé, seu caipira! Por que não pisa em sua avó?
Não, claro que não doeu. Ora, nem um pouco. Sinceramente. E foi minha culpa. É aquele passo que você dá – uma delícia, mas difícil de seguir á primeira vez. Oh, foi você que o inventou? Mesmo? Incrível! Ah, agora acho que aprendi. Observei quando você dançava com a outra moça. É excitante!
É, é excitante. Aposto que eu também pareço excitada. Estou completamente descabelada, minha saia está toda enroscada em meu corpo, posso sentir um suor frio na testa. Devo estar parecendo algum espectro saído de “A queda da casa de Usher”. Essas coisas não devem fazer bem à saúde de uma mulher na minha idade. E ele inventou aquele passo sozinho, o tarado. Parecia meio complicado a princípio, mas agora acho que peguei. Dois tropeções aqui, uma escorrega da ali e uma deslizada de seis ou sete metros. Mas consegui. Consegui também outras coisas, entre as quais um buraco na canela e um coração em pandarecos. Detesto esta criatura à qual estou atrelada. Detestei-o desde o momento em que vi o seu olhar de soslaio naquele rosto bestial. E agora me vejo travada nos seus braços pelos 35 anos que esta valsa está durando. Será que a merda da orquestra nunca vai parar de tocar? Ou essa coisa ridícula a que chamam de dança vai durar até os quintos dos infernos?
Olhe, vão tocar mais uma. Oh, que ótimo. Que delícia. Cansada? Não, nem um pouco. Poderia continuar dançando pelo resto da vida!
Eu deveria ter dito que não estava cansada. Que estava morta. Faleci, sem motivo justo. A música não pára nunca e lá vamos nós, eu e meu pé-de-valsa, a caminho da eternidade. Acho que talvez me acostume, depois dos primeiros cem mil anos. A esta altura, nada vai importar mesmo, nem dor nem calor, nem um coração partido e muito menos um tédio cruel e mortal. Quanto mais rápido, melhor.
Não sei por que não lhe disse que estava cansada. Por que não sugeri voltarmos à mesa? Poderia ter dito, vamos apenas ouvir a música, que tal? Porque, se ele aceitasse, seria a primeira vez que ele estaria dando um tico de atenção à música naquela noite. George Jean Nathan disse que o ritmo de uma valsa deveria ser ouvido em tranqüilidade e não acompanhado por estranhos rodopios das pessoas: Bem, seja o que for que Nathan esteja fazendo neste momento, está melhor do que eu. Pelo menos está seguro. Qualquer pessoa que não esteja valsando com aquela vaca da sra. O’Leary, responsável pelo grande incêndio de Chicago, deve estar se divertindo muito.
O problema é que, se voltássemos para a mesa, teria que conversar com ele. E o que eu poderia perguntar a uma mula dessas? Já foi ao circo este ano? Qual é o seu sorvete favorito? Como você pronuncia gato? Melhor ficar por aqui mesmo, na pista de dança. É quase tão bom quanto estar dentro de uma betoneira ligada.
Já nem sinto mais nada. Só percebo quando ele me pisa nos calos porque ouço o esmigalhar dos ossinhos. E tudo de importante que me aconteceu na vida passa diante dos meus olhos. Revejo aquele dia em que estive no centro de um furacão nas índias Ocidentais; lembro o dia em que rachei a cabeça numa batida de carro; houve aquela noite em que a dona da festa, bêbada, jogou um cinzeiro de bronze em seu namorado e acertou em mim; para não falar num verão em que o barco virou de borco. Ah, que bons tempos e que tranqüilidade … até cair nas garras deste monstro aqui. Nunca soube o que eram problemas, até ser arrastada para essa danse macabre. Acho que minha mente vagueia. Até parece que a orquestra parou. Não pode ser. Nunca poderia ser. E, no entanto, em meus ouvidos, há um silêncio que parece produzido pelos anjos …
Oh, eles pararam de tocar, aqueles cretinos. Não vão tocar mais. Oh, droga. Você acha que eles vão voltar? Acha mesmo, se você lhes der 20 dólares? Oh, seria incrível! E, olhe, peça-lhes para tocarem de novo aquela mesma valsa. Eu poderia dançar com você pelo resto da vida.
(Título original: The Waltz)
PARKER, Dorothy. Big Loira e Outras Histórias de Nova York. Editora Companhia das Letras, São Paulo, 1987. Tradução: Ruy Castro